quinta-feira, 30 de maio de 2013

Literatura de Quinta: com Giliard Barbosa



Ritual
Por Giliard Barbosa

Arnaldo já conhecia o roteiro: piscadinha de olho, olhada fixa e esboço de um sorriso, uma desculpa pra se aproximar e pronto, era só arrastar a moça pra um motelzinho qualquer e se satisfazer. Tinha conseguido mais uma safada pra preencher a lista não realizada na adolescência.

Algumas se faziam de difíceis, outras já iam abrindo as pernas tão logo desciam do carro. Outras, ainda, não chegavam sequer a sair dele. O mapa feminino era sempre o mesmo: mão nas coxas enquanto dirigia, um carinho nos cabelos – pra não parecer tarado demais – e, estacionasse em algum lugar discreto, puxava a mulher pelo pescoço e já iniciava carinhos mais ousados, que a minha pudicícia de narrador sem público-alvo me impede de contar.

E assim passavam Claudinhas, Joanas, Marinas, Luanas, Silvinhas, Karinas, Manus... Todas conheciam o melhor de Arnaldo, como se o tivessem por uma única vez. E realmente o tinham em dose única, se é que alguma vez o tivessem de fato.

Ocorre que Arnaldo era casado, mas não conseguia controlar os impulsos que lhe atormentavam o espírito. Queria manter-se fiel a Silvana, amava-a mais que tudo no mundo. Não cansava de dar-lhe presentes e de elogiá-la, mas também não conseguia dar conta dos próprios desejos. Já havia feito de tudo: masturbação diária, água gelada a cada maldito pensamento, abstenção sexual para tentar perder o desejo, vídeos na internet.

Não adiantava nada. Ao passar do primeiro par de pernas, Arnaldo dava um jeito de pular a cerca e entrar no paraíso momentâneo do prazer proibido. E, a cada gozo, sentia uma culpa incomensurável. E tremendamente hipócrita, porque não havia remorso que o fizesse frear a vontade imensa de burlar as regras do amor correspondido.

Assim, para tentar parecer menos cafajeste, Arnaldo elaborou um código próprio de conduta: transava apenas uma vez com cada mulher, quase sempre desconhecida, e assumia um nome diferente com cada uma, uma nova identidade a cada orgasmo. A cada gozo morria o traidor e nascia um justiceiro, que fugia do local repugnante tão logo sentisse o cheiro a sexo recém praticado. Aquele justiceiro, um dia, se corrompia aos prazeres da carne. Morria no gozo e dava origem a um novo, preocupado em reparar os erros do anterior.

E, para expulsar de vez o gosto do pecado e expiar os maus passos de seu antecessor, o justiceiro sempre cuspia nas mulheres entregues. Isso mesmo. Claudinhas, Joanas, Marinas, Luanas, Silvinhas, Karinas, Manus... Todas cuspidas, recusadas, repugnadas. Algumas se ofendiam e resolviam tirar satisfações. Outras gostavam e pediam mais. Todas ficavam a ver navios, sempre.

Um dia, Simone conheceu João. O mesmo roteiro idiota de todo homem: piscadinha de olho, olhada fixa e esboço de um sorriso, uma desculpa pra se aproximar e pronto, já queria arrastar a moça pra um motelzinho qualquer e se satisfazer. Ela resistiu, mas depois deu o braço a torcer. Esse era até gostosinho. Impôs, contudo, uma condição:

– Vou no meu carro.

E foram. O rapaz, mais previsível do que nunca, acariciou os cabelos dela antes de começar a apertá-la como se ela fosse um pacote de bolas de massagem. Em dez minutos já haviam terminado. Ele soltou um gemido, meteu com mais força, e jogou todo o peso em cima dela, como se ela fosse um pedaço inanimado de qualquer coisa.

Simone ficou com nojo. Cuspiu na cara do precoce soberbo e foi embora. Sem dizer nada, nem deixar telefone.

E desde então Arnaldo vai todas as tardes ao banco, na esperança de reencontrar Luíza.

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Giliard Barbosa faz de tudo um pouco: curte corrida, fotografia, gastronomia, e estuda teclado - mas não toca nada. Escreve desde pequeno aquilo que chama de pseudopoemas. Formado em Letras, é professor de espanhol e mestrando em História da Literatura pela Furg, onde estuda relações entre mito e literatura. Além de vir publicando alguns artigos sobre o tema, dá aulas de Literatura em projetos universitários e atua no grupo de teatro O Flato do Gato, dirigido por Geraldo da Silva. Sempre que uma palavra lhe coça os ouvidos, vai para o blog OCasmurro, depósito do arteiro poeta. 

Um comentário:

  1. Gostei do teu texto. Me lembrou o "universo" de Nelson Rodrigues. Muito bom!

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