quarta-feira, 31 de julho de 2013

Experimentos de André Barros








Conto
A GUARNIÇÃO NAZISTA

A dor era quase insuportável. Ela se contorcia, se debatia sobre o lençol de linho surrado de sua cama. Suava frio, tremia, contraria os músculos do abdômen, mordia a fronha do travesseiro, gemia um gemido de fundo de alma. Ondas de calor subiam por suas pernas, causando um desconforto quase inexplicável, absurdo. Estava morrendo, estava certa disso. As outras meninas dormiam e ao que percebesse, somente ela tinha sido envenenada. Mas como? Todas comeram da mesma comida, todas, sem exceção, foram obrigadas a provar de cada porção que fora colocada sobre aquela maldita mesa. Como somente ela ...? Claro. Os aspargos.

Quando os soldados chegaram com as bandejas na sala de degustação, elas já estavam nervosamente esperando, não ansiosas e sim apreensivas. Mesmo totalmente famintas, mesmo diante de um verdadeiro banquete das mais raras e melhores delícias gastronômicas, ninguém queria nem sequer provar tais quitutes; mas “querer” não fazia parte do cardápio.

Há exatos sete meses elas foram “contratadas” pelo Terceiro Reich para provar a comida do líder nazista, a fim de assegurar-lhe que a mesma não seria envenenada por algum inimigo declarado ou pelos tantos traidores infiltrados. Desde então, dia após dia, a cada bandeja disposta cuidadosamente sobre a mesa, o medo e a angustia cresciam exponencialmente. Que hora terrível, que horror, que tortura emocional! Quanto maior fosse a variedade de comida, maiores também eram os riscos que corriam. E naquele dia infame, a variedade era gigantesca. Tinha que ser alguma ocasião especial, alguma espécie de comemoração, talvez um aniversário, mas aquela comida toda não poderia ser apenas para ele e sua amante.

Quando a última bandeja foi posta sobre a mesa elas, sob os atentos olhares dos soldados, foram novamente aproximando-se dos pratos e provando os alimentos um a um. Se estavam bons, salgados, mal passados ou ruins, elas seriam incapazes de saber. O gosto era totalmente inibido pela tensão que a tarefa ostentava. Aquela poderia ser a última garfada de suas vidas, a última mastigada, engolida ... a última refeição.

Ela sempre era a oitava da fila das quinze meninas, que seguiam ordenadamente ao redor da mesa, parando apenas por cinco segundos na frente de cada bandeja, o que era tempo suficiente para levar à boca uma prova do alimento e seguir caminhando. Elas comiam em pé, usando tocas e luvas, e um garfo branco de plástico. Não havia carne, nunca, de nenhum tipo. Apenas vegetais, frutas, massa ou arroz, mas tudo era feito com um esmero espetacular, impecável, impressionante. Ser a oitava era uma coisa boa, pois se alguma das outras sete de sua frente fosse envenenada, e tivesse um ataque fulminante, instantâneo e fatal, ela, então, poderia escapar com vida. Mas que desgraçada esperança mórbida!

Havia cerca de dez variedades de pratos naquele dia - geralmente, eram apenas seis ou sete. Além disso, um outro fato pitoresco despertou sua atenção: todos os pratos principais tinham vindo acompanhados por algum tipo de guarnição. Oriunda de uma família pobre e humilde do interior da Alemanha, onde seu pai e irmãos apenas trabalhavam na pequena plantação da fazenda, ela se limitava a tecer, lavar roupas, alimentar os animais e cozinhar pobremente. Para ela, guarnição era só um termo militar, relacionado a armas, munição e demais artefatos bélicos. Nessa nova função, no entanto, ela descobriu que guarnição poderia ser aqueles enfeites comestíveis usados nos pratos de gente rica e culta da cidade grande, como abacaxis, cerejas, caviar e ... aspargos.

Elas não eram obrigadas a comer a guarnição, apenas o prato principal. Os soldados nunca tinham cobrado isso delas e também não faziam nenhuma questão de fazê-lo. Quanto menos comessem, menos chances teriam de ingerir os supostos venenos que poderiam estar implantados nos alimentos. Mas, naquele dia nefasto, por uma curiosidade estúpida, a menina decidiu provar aquele vegetal de nome estranho, que parecia mais um palmito verde, comprido como uma vagem, o qual jamais tinha ouvido falar antes em sua cidade natal. Nenhuma outra menina havia provado o aspargo, somente ela.

Na manhã do dia seguinte, depois de passar uma noite infernal, com cólicas desconcertantes, tendo de ir ao banheiro a cada vinte minutos, com vômitos e diarréia, somadas ao mal estar provocado pela certeza de que tinha sido fatalmente envenenada e de que iria morrer, ela descobriu que o vegetal era rico em ácido fólico e que podia provocar um disfunção diurética e intestinal aos que dele provassem, principalmente aos desacostumados.

Ela não morreu, e se sua indisposição noturna fora desencadeada por aquele único aspargo que havia ingerido, ninguém jamais ficou sabendo, mas tal fato chamou a atenção dos guardas de Hitler e a partir daquele dia, eles começaram a obrigar as meninas a provar também todas as guarnições, inclusive os aspargos.

Soneto

Salvar a vida do senhor da morte;
Servir de escudo ao senhor da dor;
Tarefa imposta sob julgo forte;
De quem da sorte nem contempla a cor.

Cada iguaria lhe desperta a ira.
Cada petisco lhe provoca o medo.
E o quão mais doce e salutar seria,
Gordura fria de qualquer azedo.

E segue Hitler sua sangrenta saga,
Seguro e certo em sua real resguarda
Contra os venenos do seu inimigo.

E assim, sustado com azeite e nabo
Segue com ele um provador escravo
Que engole o diabo num manjar divino.

Crônica
Adolf Barros

O que mais me assusta na história do Hitler é saber que ele foi um ser humano de carne e ossos como eu, como você, como todos da nossa raça são. Ele não veio de outro planeta, não foi criado num laboratório, não era um monstro alienígena do tipo filme de ficção científica. Ele nasceu de uma mulher que era sua mãe. Ele teve um pai, uma família, e ele foi, sim, um bebê fofinho e mimoso, inocente e sem maldade nenhuma, como eu, como você , como todos da nossa ração também já foram. Isso é absolutamente apavorante!

Outra questão que me incomoda é que ele nunca agiu sozinho - ele não era, nem de longe, um exército de um homem só, sempre teve aliados e nem todas aquelas idéias terríveis saíram todas somente da cabeça doentia dele. Ele era seguido, amado, idolatrado, aconselhado e, infelizmente, obedecido por muitos, mais muitos mesmo e, além disso (pasmem) ainda hoje alguns erguem criminosamente aquela horripilante bandeira nazista.

Todavia, o maior e mais desagradável desconforto que sinto em relação a isso provém da minha crença religiosa. Hitler é meu irmão. Ele é filho do mesmo Pai Celestial que eu creio ter. Ele veio para essa terra do mesmo lugar que eu estava, pela mesma razão que eu vim, para alcançar o mesmo objetivo pelo qual estou (ou deveria estar) lutando. E, caso você seja ateu, do ponto de vista biológico, ou histórico, Hitler também é, de alguma forma, seu parente. Em algum lugar da sua árvore genealógica, querendo ou não, o nome Adolf Hitler vai aparecer (e o meu também, acredite).

“Não pode ser”, você deve estar pensando. É, eu entendo a sua reação. Afinal, estamos falando de um monstro, de um assassino, de um sanguinário, de um inegável xenofóbico preconceituoso, obtuso e cruel ... mas, só um instante, o que aconteceu com aquele bebê fofinho e mimoso, inocente e sem maldade nenhuma? Bem, a minha teoria é que em algum ponto de sua vida ele achou que ela, a sua vida, valia mais do que a dos outros. Por exemplo, quando ele suspeitou que sua comida poderia ser envenenada por algum inimigo, ele tratou de providenciar quinze jovens alemãs para provarem tudo que ele fosse consumir antes de ser a ele servido. Se alguma daquelas jovens tivesse sido de fato envenenada (o que nunca aconteceu), e tivesse agonizado, vomitado as tripas, esvaecido de sangue pela boca, olhos e nariz, sentido o seu esôfago inchar até a morte, tudo bem, era somente uma jovem alemã caipira e desconhecida. No entanto, ele não poderia passar por isso. Ele tinha de ser preservado, poupado, cuidado como uma jóia rara, pois, para ele e para todos os seus aliados e seguidores, a vida de Adolf Hitler era mais importante do que a vida delas, alias, do que a de qualquer um.

Monstruoso, não é? E é isso que me assusta. Essa monstruosidade toda pode também estar dentro de mim. E, na verdade, respeitando as devidas proporções, está. Quantas vezes eu considero os meus problemas mais graves e importantes do que os dos outros? A minha dor sempre é mais dolorida, pior, mais forte. A minha pressa é sempre mais legítima, mais justificável, tanto que eu posso ultrapassar indevidamente o carro daquela velhinha amarrada ou cruzar o sinal vermelho somente uma vez, somente hoje. A minha urgência é sempre mais urgente do que urgência alheia. Entre mim e seja lá quem for (salvo aquelas cinco pessoas pelas quais eu morreria) ... eu sempre venho na frente, sempre tenho razão, eu é que mereço, eu é que devo ser poupado, eu ... eu ... eu.

Felizmente, não temos o poder de Hitler. Ninguém nos segue, ninguém nos obedece sem questionamentos e, supostamente, não temos a intenção de dominar o mundo inteiro, deixando sobre ele apenas as raças que consideramos puras. Mas, apenas hipoteticamente falando, se tivéssemos aquela mesma autoridade, aquele mesmo poder, aquela mesma posição política e social? O que faríamos? Como agiríamos? Quem seríamos? Alguém iria provar a nossa comida antes de nossas refeições? Se sim, quem seriam as quinze meninas alemãs caipiras e desconhecidas que iríamos escolher?

Que medo de Hitler! Que medo da raça humana! Que medo de mim!!
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Meu nome é André Barros, sou ator e diretor de teatro. Dirijo atualmente a Cia. de Tchêatro InAção e tenho vários textos dramatúrgicos escritos e apresentados. Participei de vários festivais de teatro e concursos literários, ganhando prêmio de melhor ator coadjuvante em Três Coroas em 2012 e indicado melhor ator de peças adulto e infantil em Itaqui em 2013. Em 2012 também fiquei em primeiro lugar num concurso literário promovido pela Biblioteca da FURG com a crônica "Milagres de Guarda-Chuva".

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