quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Literatura de Quinta, por Matheus Bandeira



Desconforto

Ouço barulhos, que vêm do lado de fora. O movimento da cidade é ensurdecedor. Não entendo o motivo de tanta loucura, se estou querendo todo o silêncio possível. Não entendo como as pessoas conseguem desrespeitar um moribundo, que pretende cavar sua própria cova sem sair de casa, sem sair do conforto da poltrona. Sem nem, ao menos, ligar a luz do abajur ao lado. As motos passam em frente à minha casa com um ronco insuportável e me pergunto se não tinha nada mais irritante para inventar, além de propagandas de cervejas, as quais sempre aparecem pessoas alegres, bonitas, com um sorriso extremamente branco. Não quero ouvir as risadas insistentes lá de fora. Respeitem uma pessoa que não quer saber que a vida, do lado de fora, existe!

Estou trancado em casa desde às oito horas da manhã de domingo. Hoje é sábado. Os jovens da minha idade passam pela minha calçada segurando garrafas de bebidas e as moças batem seus saltos altos na minha cabeça, que lateja a cada passo dado por elas. Não quero saber de vida. Estou sobrevivendo. Porque viver, para mim, por enquanto, é um esforço danado, que julgo não conseguir alcançar. Minhas pernas doem. Meu pé adormeceu, como o que aconteceu com meu coração. Acendo um cigarro e penso em comer alguma coisa qualquer, ainda existente na geladeira. Não tem nada.

Sento novamente na minha poltrona e ligo a tevê. Ainda estou de pijamas. Aumento o volume para tentar ouvir alguma palavra dita, pois as risadas e os sons dos carros rebaixados não me permitem escutar em um volume razoável. É insuportável, em um momento de tristeza, aceitar que existe vida humana na terra. Como se não bastasse tudo o que há de barulho nos motores das motos e nos sons daqueles que não tem mais onde investir nos carros, as buzinas exigem atenção do outro ao volante e de mim uma dose extra de rivotril. Nada de interessante em nenhum canal. Nestas horas me pergunto se há necessidade de pagar o olho da cara por uma antena via satélite que me dá direito a assistir quinhentos mil canais, mas que, na hora necessária, não passa nada que preste.

Tento não prestar atenção nas risadas, nos barulhos das motos, nos roncos dos motores dos carros mais bem equipados, tipo Velozes e Furiosos, nas buzinas e nos sons dos carros rebaixados dos marmanjos, que pensam que as mulheres gostam de carros modificados. Quanta autoestima, meu Deus! Só as piranhas gostam de carros assim. Mas, tudo bem. Meus pensamentos, às vezes, me fazem voar. E voam tanto que me pego lembrando de coisas, que não quero mais saber que existiram. Coloco um casaco, pego o meu cartão de crédito e vou até o posto de gasolina comprar uma garrafa de Red Label, pois a noite vai ser longa e tenho de estar bem acompanhado. Enfrento a vida quase que extraterrestre de humanos felizes.

Volto para casa e busco, em meio à bagunça da cozinha, um copo limpo para entornar aquela garrafa inteira de uísque, com alguns gelos. Fui obrigado a comprar um pacote de bolachas para comer, pois, senão, assim, passaria mal de fome. Não pelo fato de passar mal, mas não existe nada mais degradante do que passar mal de fome. Poderia ficar mal por qualquer outra coisa que seria mais digno na minha situação, mas não por fome. O primeiro copo foi como água no sertão, no Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. O segundo foi mais calmo, mas ainda parecia água. No terceiro...

No terceiro copo me atirei no sofá e depois de ter tomado toda a quantidade de uísque servida, joguei o copo longe e entornei a garrafa, pois beber no gargalo, num momento desses, é bem mais viril. O copo fazia parte do nosso enxoval. Minha mãe que tinha nos dado. Foda-se o copo. Mês que vem, quando eu receber, compro um milhão de copos de cristal, pensei. Acendi um cigarro e fiquei olhando o teto, com a melodia nada harmoniosa de pessoas felizes no lado de fora. Como é irritante a felicidade alheia, quando se quer morrer ou se está morrendo ou se está, apenas, exagerando um pouco. Porque me dou o direito de ser exagerado na minha dor.

De repente, lá pelo quase final da garrafa, o teto estava meio estranho. Parecia que estava se mexendo sem meu comando. Esfreguei os olhos e o danado continuava a mexer-se. Soltei a garrafa em um espaço minúsculo na bagunça da mesa de centro, na sala e tentei me levantar. Estava embriagado de saudade e de Red Label 12 anos. Comprei o de 12 anos porque o de 18 não tinha mais no posto. Pensava que beber coisa boa, na dor, é mais gratificante e menos dolorido. Nunca bebi cachaça para chorar. Seria como querer sentir uma dor física e morrer de cirrose. Não estava muito afim disso. Pelo menos não naquela hora. Puxei uma almofada e ajeitei-me no sofá mesmo. Como não conseguia me levantar pensei: o que não tem remédio, remediado está.

Tentei dormir sem fantasiar as pessoas que riam na calçada. Acabei sonhando que elas riam de mim. Estava andando com meu pijama, um cigarro e um copo de uísque. Com a barba por fazer, passava por elas e elas riam de mim. Apontavam-me o dedo e debochavam. Não sei o porquê. Até parece que elas nunca sofreram de saudade. Não sonhei mais nada depois disso. Ainda bem que não sonhei com ela. Seria dor demais. Na verdade, não sei qual a dor pior: sonhar com ela ou me manter acordado sem ninguém. Uma boa pergunta ao meu psicólogo, que me fará encontrar a resposta em mim mesmo. É irônico sofrer. É irônico pelo fato de que fui imposto, a contra gosto, óbvio, por ser uma imposição, a estar em um lugar ou estado que nunca experimentei. E, dizem, que é aí que aprendemos mais sobre a vida. Porém, ninguém nunca me perguntou se eu queria aprender algo. Para aprender é preciso sofrer como neste dia? Talvez eu não queira mais isso para mim. Sim, talvez eu prefira viver na ignorância.
_____

Matheus Bandeira é formado em Direito, atua como sócio no escritório Alves, Alves e Carvalho Advocacia e trabalha na Prefeitura Municipal do Rio Grande. Amante de MPB, de uma boa roda de amigos e risadas, gosta, bastante, de discussões literárias e viaja, quase que literalmente, nas obras de escritores brasileiros. Desde cedo desenvolveu o gosto, se é que se pode dizer assim, por escrever, porém, de jeito nenhum, considera-se escritor. Segundo ele, é “apenas um cara que gosta de escrever”. Blog: Matheus Bandeira, Captando Palavras (http://www.matheusbandeira.blogspot.com.br/), Página de Facebook: Matheus Bandeira – escritas (http://www.facebook.com/pages/Matheus-Bandeira/552317508132445).

Um comentário:

  1. Muito bom. Excelente como descreveste o desconforto que esses sentimentos que gostaríamos de não aprender nos causam.
    Gostei mesmo.
    Abraços Matheus.

    ResponderExcluir