quinta-feira, 11 de abril de 2013

Literatura de Quinta - com Paulo Olmedo





O fazedor de chuva*
Por Paulo Olmedo


Quando eu era criança, na minha pequena cidade, havia muitas histórias que nos causavam medo. Hoje em dia, algumas dessas histórias seriam classificadas como lendas e muitos até ririam se as contássemos a sério. Mas na minha época, elas eram revestidas de uma gravidade quase divina e quem zombasse delas recebia em troca um olhar atravessado, que imediatamente o colocava na categoria de herege.

Lutei muito comigo mesmo, ao longo dos anos, contra a história que vou contar. E até hoje, às vezes, quando a conto a algum solicitante, me interrogo se ela aconteceu de fato. Mas a verdade é que, talvez pelo tom solene que emprego, talvez pela minha idade avançada cujos cabelos brancos confessam, os meus ouvintes a tomam como verdade incontestável. E emocionam-se, achando que a vida é mesmo feita de uma magia inexplicável. Quanto a mim, já duvido seriamente da minha história. Parece-me, cada vez mais, um sonho qualquer que tive.

Dos que me conheceram quando criança, sempre ouvi que era um menino esperto e muito curioso. Talvez por isso, aquela figura sentada no banco da praça me atraía tanto. Era um homem velho, o qual todos ignoravam a presença, que ficava lá, todos os dias, os olhos perdidos no vazio, fitando algo que um olhar qualquer não podia dizer. Ninguém sabia dizer como ele viera parar ali, ou por que razão sentava todos os dias no mesmo banco, na mesma praça. De fato, ninguém sabia ao certo se ele saía dali. Sua presença já fazia parte da velha paisagem de praça antiga de cidadezinha esquecida. Não bastasse a insólita presença, que a maioria das pessoas já haviam se acostumado e, portanto, nem mais achavam extraordinário, às vezes o velho homem se punha a chorar. Era um choro melancólico, de quem descobre que a espera é inútil, mas não arreda pé, pois não sabe pra onde ir. E quando as lágrimas escorriam em sua face, acompanhadas de um gemido triste, ninguém corria para acudi-lo ou lhe oferecer conforto. Rumavam para suas casas, cientes da iminência da chuva. Ninguém sabia explicar, talvez nem fosse necessário, mas toda vez que o Velho Fazedor de Chuva – assim as pessoas o chamavam – banhava as faces com suas lágrimas, o céu escurecia, não importava a estação, e todo mundo corria para suas casas, para fechar as janelas e tirar as roupas do varal.

Os meninos da minha idade, assim como eu, temiam aquela figura. Ninguém se atrevia sequer a se aproximar do Fazedor de Chuva. Muitos de nós acreditavam piamente que ele pudesse largar um relâmpago em quem se aproximasse, ou soltar uma trovoada simplesmente abrindo a boca pra dizer alguma coisa. Se a velha praça, do velho banco, do Velho Fazedor de Chuva, não fosse no meio da cidade e, consequentemente, caminho para qualquer direção que tomássemos, certamente evitaríamos de passar por ela. Porém, como a necessidade nos obrigava, passávamos muitas vezes por ali, na ida ou na volta da escola, quando precisávamos ir ao armazém e até mesmo para irmos ao campinho de futebol. Apesar de amedrontadora, a imagem do velho já nos era corriqueira e muitos sequer olhavam para ele, esquecidos de sua presença. Eu, porém, parecia atraído magneticamente por sua presença eterna, sendo que – não quero que me acredite – muitas vezes, era ele quem parecia me observar.

Obviamente, não fosse por algum evento fortuito eu jamais me aproximaria do Fazedor de Chuva. No entanto, parece que tudo conspira a favor daqueles que se atrevem a quebrar os paradigmas estabelecidos. Não que eu considere uma sorte que isso aconteça, e à época provavelmente, deve ter passado por minha cabeça que foi um grande azar. Mas hoje, já tendo passado por tudo que passei, não posso deixar de crer que foi uma bênção quando a nossa bola de futebol – a única da cidade, diga-se de passagem – recebeu um chute defeituoso e foi-se esconder medrosamente debaixo do velho banco do Velho Fazedor de Chuva.

Quase houve um briga entre nós. A maioria, amedrontada, não queria ir buscá-la. O dono chorava encolhido, prevendo a surra que levaria se chegasse em casa sem ela. Eu estava paralisado, olhando na direção da bola, era o que parecia, ao menos. Na verdade, eu olhava na direção do Velho e via naquela pelota embaixo do banco a grande oportunidade de perguntar a ele o que fazia ali. Enquanto os meus amigos discutiam, eu tirei coragem não sei de onde e candidatei-me a resgatar o brinquedo perdido. Eles entreolharam-se, julgando-me louco e eu nem esperei por sua aceitação para caminhar em direção ao banco – e ao Velho. Os garotos paralisaram por uns segundo e depois saíram correndo, sem querer saber se eu iria conseguir ou não, afinal uma tempestade podia estar a caminho.

Até hoje fico pensando o que me deu para enfrentar a aventura que fazia meus amigos correrem. Lembro que quando trouxe a bola de volta, menti. Falei que a peguei, apenas, e saí correndo. Eles não entenderiam. Fosse o Velho um louco ou um bruxo talvez eu me gabasse de tê-lo enfrentado. Porém, o que ouvi dele foi tão trivial e ao mesmo tempo tão marcante que eles não poderiam saber.

Eu tremia um pouco quando me aproximei do banco, olhei pra trás e vi as costas de meus amigos que corriam. Fui me chegando, devagar. Arrisquei falar-lhe, talvez adiantasse:

- Senhor, posso pegar a bola?

O Velho sorriu. Um sorriso largo que até o sol brilhou mais forte. Era quase como se me cegasse. Olhou pra mim, seus olhos possuíam uma serenidade que antes eu não percebera, e bateu com a mão no banco, convidando-me a sentar. Eu já não me lembro se ainda tremia, mas tenho a impressão de que o tempo que levei até sentar ao seu lado levou uma eternidade. Quando estava sentado, parecia que o medo já não mais existia. Pelo contrário, uma paz serena tomou conta de mim. Olhei pro vazio, como se quisesse enxergar o que só o Velho enxergava.

- Sabe, meu filho – principiou ele, assustando-me com sua voz. Há muito tempo eu tinha uma casa. E tinha uma família. E tinha um filho, parecido com você. Eu nunca dei muita atenção pra ele. Eu tinha minhas coisas pra resolver e ele parecia tão independente. Mas um dia ele se foi. Era só uma criança! Mas eu não consegui chorar. Era como um estranho pra mim, porque eu nunca estava por perto. E eu fiquei triste, muito triste, mas por muito tempo eu ainda não conseguia chorar. Não fazia meu tipo. Um dia, eu estava voltando pra casa e, de repente, eu senti uma vontade muito grande de chorar, quase como meu peito fosse se quebrar de tão apertado. Então, eu chorei; e o céu escureceu. E chorou comigo. Desde então nunca mais consegui voltar pra casa. Fico à espera do choro.

Eu acho que à época eu deveria ter chorado. Era o que Velho esperava. Ao contrário, eu sorri. Não era um sorriso de escárnio, mas de esperança. Abaixei, peguei a bola, e fui embora. Ainda olhei uma vez mais para trás e lá estava o Velho, com um olhar triste, como se me dissesse para não abandoná-lo. E antes que eu encontrasse meus amigos, desabou um temporal que durou dias. Quando o tempo clareou, o Velho não estava mais lá.

Por muito tempo, eu não entendi as palavras do Velho. Sequer me apiedava de sua história. Mas um dia, parei pra pensar melhor e então, subitamente, me veio um aperto na garganta, meus olhos se encheram e minha boca gemeu incontrolável. E naquela dia choveu.

Desde então, fico sentado aqui neste banco de praça, à espera de algo que eu sei que nunca virá.

*Este conto está presente no livro “A razão do absurdo”.
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Paulo Olmedo - 
Formado em Letras-Português, pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em História da Literatura, pela mesma instituição. Escreve contos e tem experiência na área do audiovisual e teatro. É dono do blog Vida Irreal e, no momento, aposta no projeto Mini Olmedos.

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