sábado, 27 de julho de 2013

Experimentos de Volmar Camargo Junior


Glyn

Há pouco mais de cinquenta anos, quando tinham então vinte anos, meus pais se encontravam imersos numa vida orgiástica, viajando pelo mundo em busca de toda sorte de experiências eróticas, narcóticas e, em alguns casos, criminosas. Mamãe, notória herdeira de um incalculável bocado da Inglaterra, dilapidou o que seria sua parte da herança assim que meu pai pôs as mãos nelas (em minha mãe e na herança). Meu pai, um jovem advogado que trabalhava para um grande escritório, era tão bonito e eloquante quanto era um amante voraz e um tipo muito peculiar de bon vivant – o aventureiro. Nasci em 1963, no dia em que estavam atravessando a fronteira do Brasil com o Paraguai, em um carro carregado com roupas de lã, um cão e quarenta e cinco quilos de maconha. No mesmo dia, recebemos em Asunción um telegrama do antigo empregador de meu pai contando do falecimento de vovó Dora (meu nome é em sua homenagem) e da falência irremediável em que a família caíra. Papai foi encontrado cinco dias depois num puteiro da capital paraguaia, numa trip de chá de cogumelo de onde jamais voltou. Mamãe, então com vinte e dois anos, carregando um marido esquizofrênico e um bebê gigantesco (nasci com quase seis quilos) descobriu que da antiga e famigerada fortuna restava uma velha mansão em Bristol, entulhada de quinquilharias centenárias de utilidade duvidosa ou nula. Durante o último meio século, vivemos de vender e comprar bugigangas históricas no Portobello Road Market, aprisionadas num estoicismo digno de nota, mas jamais fomos infelizes. Há bem menos tempo conseguimos abrir uma floricultura.

Conto-lhes esta história porque um dia desses, quando remexia velhos documentos pessoais de vovó Dora, encontrei seu diário de adolescente. Fiquei estupefacta com aquela preciosidade. Trata-se, na verdade, de uma caixa repleta de anotações, fotografias, recortes de jornal e aquilo que achei mais interessante: quinze anos de sua correspondência íntima, desde 1925 até 1940, especialmente entre ela e sua melhor amiga, Sonia, que mudara com a família para Paris no fim da Primeira Guerra. Um fato que muito me chamou a atenção foi Vovó Dora e Sonia falarem a respeito de um certo Glyn, pelo que entendi, um amigo que tiveram na primeira infância.

Em cada carta, Sonia e Dora contavam uma à outra as peripécias de Glyn, das notícias que tinham dele desde que embarcou num zeppelin na estação de Bristol em Maio de 1918: passara pelas selvas do Congo, pelo Cabo da Boa Esperança, lutara com tigres em Bengala, escalara o Himalaia, comera gafanhotos em Pequim, atravessara num bote o Pacífico desde o Japão até o Equador, roubara a coroa do rei de Eldorado (que ficava, naturalmente, no meio da Floresta Amazônica), reencontrou seus irmãos ursos nas Montanhas Rochosas (e pediu um autógrafo na sola do pé ao presidente Teddy Roosevelt) para então desaparecer no oceano procurando o continente perdido de Atlântida. E, de cada lugar, Glyn enviava uma lembrancinha para as correspondentes. Depois, a medida que avançavam para o fim da adolescência, “Glyn” passou a ser um código. Chamavam-no “o meu Glyn”. Havia um Glyn Parisiense, que nada tinha de desbravador dos sete mares, mas um bom banqueiro, intrépido sobretudo em certos atrevimentos com os dedos sob a saia de Sonia, e havia o Glyn Britânico, que viria a ser meu avô, cujos relatos pormenorizados do evento em que minha mãe foi concebida talvez justifiquem sua irreverência juvenil.

Aquelas cartas surgiram para mim como a descoberta de um universo então desconhecido, tristemente desconhecido eu diria. Era mais que a reconstrução da vida daquela casa, quarenta anos antes de minha existência: Dora e Sonia cultivavam o prazer das coleções. Soube que cada um dos itens daquele absurdo amontoado de objetos que ocupava centenas, talvez milhares de compartimentos da velha casa, tinha uma história, uma porção de realidade agarrada a eles, cuja existência poderia trazer a Inglaterra, talvez da Europa, emaranhada desde a Idade Média até o início dos bombardeios nazistas. Bonecas, itens de toilette, peças de jogos de tabuleiro, rótulos de embalagens, revistas – algumas bastante ousadas para a época – e que primeiro minha mãe, depois eu e ela, e depois do Alzheimer, eu sozinha, fizemos o desfavor histórico de disseminar sem jamais ter compreendido o valor daqueles cacarecos. E, muito provavelmente, vendido a alienados como nós, por umas poucas libras, ou de uns tempos pra cá, por centavos de Euro, coisas que não tinham preço.
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Volmar Camargo Junior, o V., nativo de Cruz Alta, ativo em Rio Grande, é poeta, vendedor de livros. professor não praticante, pai do Dimitri. Escreveu os blogs Um resto de café frio, O balcão das artes impuras e Verbo. Escreve agora o Pragas Urbanas Renitentes. Seu primeiro livro em papel é O Balcão das Artes Impuras (Multifoco, 2012).O poema de V. Camargo Junior integra o projeto Pragas Urbanas Renitentes.

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