quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Literatura de Quinta, por Adriane Dias Bueno



MARGINAL

“A vontade que eu tenho mesmo é jogar tudo pro alto. Acabar de vez com tudo e me entregar a marginalidade. Esquecer as regras, me tornar um pária, agarrar a metralhadora e sair disparando contra tudo e todos. Largar esse trabalho, com seu sorriso diplomático forçado para agradar senhores e senhoras, onde tenho que ser educado pra não levar um chute no traseiro do patrão. Vender cultura. De que adianta? A maioria nem educação mostra quando vem aqui para comprar.

Então, a vontade que tenho é essa. E porque não? Seria uma alternativa. Uma vida marginal, distante de formalidades, de concepções preconceituosas sobre o que é bom ou ruim, sobre o que tenho que fazer ou dizer para agradar a quem quer que seja.

Até já me vejo na Praça Dr. Pio, perto do eucalipto mais antigo do Estado, ou na Xavier, perto do chafariz, ou na Tamandaré, em frente ao monumento ao herói farroupilha, disparando a metralhadora, tirando três ou quatro notas dela, desafinadas, gritando umas palavras meio loucas, mas que a multidão ia gostar. Vejo meu filho, meu piá, com uma faixa na testa, segurando o cabelo levemente comprido, de bermudas e camiseta, cantando junto ou dançando, fazendo a platéia sorrir de sua ingenuidade. E a minha guria, a mulher da minha vida, me acompanhando com o chapéu na mão para arrecadar o que quisessem me dar pelos disparates ou verdades que eu metralhasse.

E pra completar, eu venderia versos por cinqüenta centavos, rabiscados a pressa em uma folha meio amassada de um caderno qualquer que eu tivesse a mão, versos mal escritos para quem não os entendessem, versos bem escritos para quem soubesse ler. Poesia de primeira ou quinta categoria, odiada por ultrapassar as margens confinantes do papel, amada por expor a fealdade do mundo real.

Mas para as velhinhas simpáticas, aquelas que ficam nas praças por causa da sua solidão, ou para os mendigos, eu doaria meus textos mais belos, as minhas músicas estropiadas e desafinadas, contudo singelas. E para as crianças, eu pintaria desenhos estranhos sobre astronaves e seres de outro mundo ou de seus heróis preferidos.

Eu seria expulso das praças várias vezes por não ter o devido registro, mas sempre voltaria. Eu seria uma praga, um desconforto, um louco, um bandido. Mas eu viveria disso, dessa vida e escrita de artista marginal. Talvez isso fosse melhor do que ficar sorrindo como um boçal, num emprego que, se paga as contas, não alimenta o coração, não satisfaz a mente, nem estimula a compaixão”.

Então Marília gritou: “A comida tá na mesa. Vem senão vais te atrasar”.

Ele baixou a cabeça, sorriu triste e desligou a filmadora. Agora iniciaria sua encenação.

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Adriane Dias Bueno nasceu em Rio Grande/RS, é casada e exerce a profissão de advogada. Participou de diversas Antologias da Ed. CBJE entre 2010 e 2012. Participou com “Crônica Transitiva”, na Edição nº 34, da Revista Samizdat, e com o poema “Multiplamente”, na Edição nº 36, desta mesma Revista Eletrônica. Publicou dois livros: “Casa de Ventos e Sussurros”, CBJE, 2010, e “Estranhamento”, Ed. Scortecci, 2012. Tenta rabiscar em dois blogs: www.avessasingularidade.blogspot.com.br e www.br392.blogspot.com.br. Pretende escrever por toda a vida.

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