O mestre e eu
Por Paulo Olmedo
Ele disse que me desejava noites em claro. Eu, obviamente, achei interessante, não tanto como um desejo literal, mas como possibilidade poética. A representação do artista. Café e cigarros no meio da noite. Achei que se referia à angústia criadora, que não te deixa dormir, mas, talvez implicitamente, houvesse uma referência ao café que te deixa insone. Os cigarros foram uma conclusão óbvia a partir da imagem clássica do escritor, com demônios sussurrando em seu ouvido, sentado em sua cadeira giratória em frente à máquina de escrever, com o café ao lado, no enfumaçado ambiente em que o cigarro, à metade, repousa no cinzeiro. Eu sempre achara que dormir era a resposta. Não dormir, propriamente dito, mas sonhar. No sonho um mundo se desvela. Possibilidades narrativas. Ideias originais roubadas do meu eu em repouso. Porém, observando meu escritor imaginário – surpreendentemente não era eu, talvez uma versão minha, de barbas brancas e calvície proeminente -, atento para o fato de que é noite. Ou seja, naquela imagem, por fato viciada, a noite era um componente. A noite em claro, com toda sua contradição. Ao deixar o mestre, havia eu achado sua observação tola, uma vez que renegava o sonho, talvez o mais poético ato humano, porém ao pôr-me a refletir, desacreditei-me e questionei o que antes pensava. E naquela noite não dormi.
(...)
Quando tornei a ver o mestre, algumas noites em claro já haviam passado. Ele riu da minha credulidade e disse que a metáfora não importava, que o importante era a reflexão. Indaguei se este era o primeiro passo para me tornar aquele escritor, do café e dos cigarros. O mestre achou curioso e me explicou que o primeiro passo era matar aquela imagem. Percebe, ele disse, o sonho é uma imagem pronta, assim como aquele homem e sua máquina de escrever, a arte é fruto da dor. E quando eu começava a compreender que era preciso me desprender das coisas pré-estabelecidas, que a máquina de escrever não datilografava sozinha, que o escrito é fruto do suor e esforço, o mestre me sentenciou: o que te desejo não são noites em claro, mas noites mal dormidas. Aquilo foi pior. Noites mal dormidas envolvem tentativas. Lutar contra o sono é uma coisa, querer e não querer dormir é outra. O mestre havia me perturbado. Antes ficava acordado, a olhar pro escuro, depois deitava sabendo que não adormeceria. Tentar o suicídio é pior que o suicídio em si. Há uma vergonha velada na incompletude. E quando eu dormia, por instantes, minha mente chamava de volta. E assim ficava, num constante movimento de sonho e consciência, não pertencendo nem a um, nem a outro. E muitas noites se sucederam desta forma, sem saber quando acordava ou quando, enfim, repousaria.
(...)
Passei muitos anos sem ver o mestre. Não porque não quisesse, mas porque não o encontrava. Era como se tivesse sumido. Tornei a encontrá-lo ao cabo da minha vida – eu já um velho, de barbas brancas e calvície proeminente. A ele o tempo não havia passado. Disse-lhe, mestre, por onde andavas? Havia tanto ainda para eu aprender. Ele riu como antes e falou que estava comigo, sempre esteve. Eu o havia absorvido, na labuta diária do esforço da folha em branco, na dor das noites mal dormidas. Eu, e agora me dava conta, me transformara nele. Eu o havia matado. Tentei pedir desculpas. Ele sorriu e enquanto mexia a boca era eu quem falava. Não se preocupe, é para isso que servem os mestres. Agora já podes dormir em paz.
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Ele disse que me desejava noites em claro. Eu, obviamente, achei interessante, não tanto como um desejo literal, mas como possibilidade poética. A representação do artista. Café e cigarros no meio da noite. Achei que se referia à angústia criadora, que não te deixa dormir, mas, talvez implicitamente, houvesse uma referência ao café que te deixa insone. Os cigarros foram uma conclusão óbvia a partir da imagem clássica do escritor, com demônios sussurrando em seu ouvido, sentado em sua cadeira giratória em frente à máquina de escrever, com o café ao lado, no enfumaçado ambiente em que o cigarro, à metade, repousa no cinzeiro. Eu sempre achara que dormir era a resposta. Não dormir, propriamente dito, mas sonhar. No sonho um mundo se desvela. Possibilidades narrativas. Ideias originais roubadas do meu eu em repouso. Porém, observando meu escritor imaginário – surpreendentemente não era eu, talvez uma versão minha, de barbas brancas e calvície proeminente -, atento para o fato de que é noite. Ou seja, naquela imagem, por fato viciada, a noite era um componente. A noite em claro, com toda sua contradição. Ao deixar o mestre, havia eu achado sua observação tola, uma vez que renegava o sonho, talvez o mais poético ato humano, porém ao pôr-me a refletir, desacreditei-me e questionei o que antes pensava. E naquela noite não dormi.
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Quando tornei a ver o mestre, algumas noites em claro já haviam passado. Ele riu da minha credulidade e disse que a metáfora não importava, que o importante era a reflexão. Indaguei se este era o primeiro passo para me tornar aquele escritor, do café e dos cigarros. O mestre achou curioso e me explicou que o primeiro passo era matar aquela imagem. Percebe, ele disse, o sonho é uma imagem pronta, assim como aquele homem e sua máquina de escrever, a arte é fruto da dor. E quando eu começava a compreender que era preciso me desprender das coisas pré-estabelecidas, que a máquina de escrever não datilografava sozinha, que o escrito é fruto do suor e esforço, o mestre me sentenciou: o que te desejo não são noites em claro, mas noites mal dormidas. Aquilo foi pior. Noites mal dormidas envolvem tentativas. Lutar contra o sono é uma coisa, querer e não querer dormir é outra. O mestre havia me perturbado. Antes ficava acordado, a olhar pro escuro, depois deitava sabendo que não adormeceria. Tentar o suicídio é pior que o suicídio em si. Há uma vergonha velada na incompletude. E quando eu dormia, por instantes, minha mente chamava de volta. E assim ficava, num constante movimento de sonho e consciência, não pertencendo nem a um, nem a outro. E muitas noites se sucederam desta forma, sem saber quando acordava ou quando, enfim, repousaria.
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Passei muitos anos sem ver o mestre. Não porque não quisesse, mas porque não o encontrava. Era como se tivesse sumido. Tornei a encontrá-lo ao cabo da minha vida – eu já um velho, de barbas brancas e calvície proeminente. A ele o tempo não havia passado. Disse-lhe, mestre, por onde andavas? Havia tanto ainda para eu aprender. Ele riu como antes e falou que estava comigo, sempre esteve. Eu o havia absorvido, na labuta diária do esforço da folha em branco, na dor das noites mal dormidas. Eu, e agora me dava conta, me transformara nele. Eu o havia matado. Tentei pedir desculpas. Ele sorriu e enquanto mexia a boca era eu quem falava. Não se preocupe, é para isso que servem os mestres. Agora já podes dormir em paz.
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Paulo Olmedo - Formado em Letras-Português, pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em História da Literatura, pela mesma instituição. Escreve contos e tem experiência na área do audiovisual e teatro. É dono do blog Vida Irreal e, no momento, aposta no projeto Mini Olmedos.
grande Olmedo! sempre uma ótima leitura. bejabraço
ResponderExcluirRody