No sexto dia, quando a cerveja acabou, Craig, recostado na friagem do balcão, não parava de pensar no dia em que Mr. Collins havia morrido. Todos tinham concordado em não contar nada a ninguém até por que dos sete que ali estavam Mr. Collins era de longe o mais detestável. Ainda assim, agora, ouvindo o som de Lorraine e Josh no quarto contíguo enquanto todos os outros dormiam, uns de tédio outros de bêbado, o açougueiro se arrependia de ter levado o cutelo para o pub.
Jemaine sabia que Craig estava acordado, mas não seria ele quem iria puxar assunto com o “maluco do cutelo”. Mr. Collins tinha pago o preço por tentar se aproximar. Se bem que Mr. Collins era um velho tarado e falastrão e os poucos dias que ficaram presos ali dentro foram uma tortura. Não fosse a cerveja! E agora o estoque havia acabado e, num dos poucos momentos em que conseguiram sinal, na TV dizia que teriam pelo menos mais três dias de neve. Jemaine gostaria de poder contar a todos o porquê de ter ido ao pub mesmo sob a ameaça de uma grande nevasca. Era algo incomum pra ele, que quase nunca bebia. Mas se dissesse que chegou em casa e viu Rita se exibindo na câmera para um possível desconhecido poucos acreditariam que a médica da cidade era capaz de tal coisa. Provavelmente duvidariam daquele maldito estivador sortudo que tinha a mulher mais bonita da cidade e ainda reclamava da vida. E, pela primeira vez, Jemaine lamentou que a cerveja tinha acabado.
Enquanto dormia, Virginia sonhava com dias melhores. Dias em que era casada, feliz, seu filho George ainda era vivo e o maldito do seu marido não a havia abandonado por uma qualquer. Os últimos seis dias tinham sido seus melhores desde então. Já quase não se lembrava do primeiro dia, quando bêbada e carente, se deixou ser espiada no banheiro por Mr. Collins. Talvez até mais do que isso, mas agora tentava não lembrar. Também não conseguiu se sentir mal quando a briga estourou e Mr. Collins discutiu com Craig. Velho estúpido! Todo mundo sabia que Craig era apaixonado por aquela vadia da Lorraine. O que fazia dele um estúpido, também. Na verdade, Virginia não foi a única a não se sentir mal, exceto Mr. Jones, o dono do pub, que bradou desconcertado que, não fosse a neve que cobria tudo e todos lá fora, chamaria a polícia. O barulho da neve caindo acalentava o sono de Virginia que, se pudesse, gostaria que a neve caísse para sempre.
De olhos fechados, tapado até os ossos, Mr. Jones tentava em vão dormir. Amaldiçoava a neve que caía já há seis dias e que fizera com que outras seis pessoas ficassem presas com ele em seu pub. Teve um pensamento recorrente dos últimos dias. Teria Phil sobrevivido? Seu jovem funcionário havia saído do serviço apenas meia hora antes da grande nevasca. Agora tudo estava coberto de neve lá fora e com o telefone não funcionando, tampouco os sinais dos celulares, Mr. Jones ficava apreensivo ao pensar no pobre garoto. Pensou em como foi egoísta nos primeiros dias, ao ficar irritado com aquelas pessoas bebendo de sua bebida e comendo de sua comida sem se preocupar com a conta. Agora sabia que o prejuízo foi um mal necessário. Fez amigos, poderia se dizer. Mesmo tendo perdido um dos melhores. Não que Collins fosse um grande amigo, era um beberrão, mas pagava sempre e era um bom papo. Se eles soubessem que foi Collins quem o convenceu a ceder seu estoque, muito bem guardado, para que as pessoas não morressem de fome enquanto a neve não cessava. Um pobre diabo o Collins, seu único defeito era gostar de mulheres. Se é que isso seja um defeito. Teria sido Collins quem denunciou seu estoque reserva? Ninguém além de Mr. Jones e Phil sabia do esconderijo. Mesmo assim estava sumindo, aos poucos, e até agora ninguém havia se acusado. Com o estoque reserva desaparecendo, Mr. Jones rezava para que a nevasca, enfim, passasse.
Maldita neve! Já faz o quê... uns cinco dias, talvez. É difícil dizer preso aqui nesse guarda-roupa. Pelo menos não ouvi nenhuma briga, desde o dia em que os gritos de Lorraine me acordaram. Maldita Lorraine! Tudo bem que a nevasca atrapalhou nossos planos, mas ela podia ter vindo aqui no quarto de Mr. Jones uma vez ao menos, como tínhamos combinado. Ou será que ela achava que eu desisti e fui embora no meio da nevasca? Não, só o Mr. Jones para acreditar que eu iria para casa com aquele monte de neve ameaçando cair. Pelo menos o velho sovina me deixou sair meia hora mais cedo. Não fosse o estoque reserva eu já teria morrido de fome. Sorte minha que ele é um pão-duro e não compartilhou essa comida, também. Nunca sei quando é seguro sair sem acordar os outros. Especialmente Mr. Jones. Eu não saberia explicar pra ele por que fiquei no pub. Muito menos no quarto dele. Se ele descobrir que venho encontrando Lorraine, às escondidas, em sua própria cama, é capaz de me matar. Mesmo que ele e Lorraine não tenham nada há uns seis meses. Só me resta esperar a neve passar e dar o fora daqui como se nada tivesse acontecido.
Recostado na cama, Josh observava Lorraine dormir. Tinha dezessete anos e ela era sua primeira mulher. Sem perceber, viu-se sorrindo. Nem deveria estar em um pub, mas sabia que se não fosse buscar cerveja para seu padrasto provavelmente sua mãe pagaria o preço. Tentou não pensar que ela deve ter pago o preço, de qualquer forma. Ficou pensando nos dias que se passaram e como pareciam anos. Há pouco, sua jornada para se transformar em homem havia se completado. Já não sentia mais remorso por ter pego o cutelo de Craig no meio da briga e batido em Mr. Collins. Batido demais, até. Ele havia tentado tocar Lorraine. Lembrou que golpeou Mr. Collins como se fosse seu padrasto. Passou a mão nos cabelos de Lorraine e, de repente, pensou que gostava dela de verdade. Pensou que quando a neve passasse podia pedi-la em casamento.
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Paulo Olmedo - Formado em Letras-Português, pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em História da Literatura, pela mesma instituição. Escreve contos e tem experiência na área do audiovisual e teatro. É dono do blog Vida Irreal e, no momento, aposta no projeto Mini Olmedos.
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