Tic-tac
Um dia ele conseguiu ouvir um relógio em sua casa. Olhou para os pulsos e não tinha nada, olhou para todos os lados, há anos tinha se livrado dos relógios de ponteiro. Mas ouviu o tic-tac-tic-tac que era quase um sussurro. Tentava encontrar da onde vinham os estalidos do ponteiro do relógio, mas era tudo invisível. Escutava até quando queria estar em paz no banheiro. Parecia que tinham plantado um relógio invisível no seu lar. Aquele sussurro contando que as horas que passavam ficava batendo em sua mente. Como um tic-tac suspenso no ar.
De repente, em qualquer dia, qualquer hora, qualquer minuto ou segundo ele saiu de casa e o tic-tac saiu também acompanhando-o. Seguiu por todos os cantos e lugares e continuava aquele sussurro, batia mas era quase um silêncio. Ele procurava o relógio, às vezes encontrava em algum escritório, ou na parede do banco, ou na sala do médico. Muitas vezes não tinha nenhum por perto.
Ele decidiu acampar, sem relógio, sem tempo. Mas o tic-tac acompanhava quando parecia que não podia mais ter ser humano nenhum. Era o tempo sussurrando sobre horas. Era o tic-tac do relógio invisível prendendo o homem entre os seus ponteiros. Achatando-o.
Aquilo começava a incomodar, a ganhar mais som, mais barulho, a soar mais. Era o tic-tac do relógio que martelava em sua cabeça.
Decidiu então, para não enlouquecer, se apaixonar: começou a dar corda nos relógios.
Decidiu ter um relógio no pulso, já que escutava sempre o tic-tac. Logo comprou um relógio para a parede, um despertador para o quarto, outro relógio de ponteiros para o escritório. Decidiu que ia dar de presente relógios para os amigos que chegavam atrasados, e para os que chegavam na hora para não perderem o tempo. Decidiu que ia conviver com o tic-tac já que não poderia abafá-lo.
Transformou sua vida em relógios, comprou um relógio de Cuco que tinha que dar corda, e quase não saia de casa para ele não atrasar, não saia no final de semana porque corda tinha que dar. Começou a vibrar no som dos ponteiros, se não podia vencê-los fez deles o sentido da sua vida. Sentido horário é claro. A cada volta de 360 graus era um alento e quando um relógio parava corria para o relojoeiro porque o tempo não para. Chegava ao relojoeiro e ficava aliviado com o som rítmico das horas.
Virou inglês de tão pontual. Nunca perdia as horas, nunca perdia tempo, nunca perdia o tempo. Na sua casa tinha relógio de sol, relógio de pulso, relógio de parede, relógio antigo, despertador, relógio no micro-ondas, relógio onde pudesse ter relógio. Ganhava relógios de presente. Na sua parede já tinha mais de um relógio. E sempre colocava todos em dia, porque relógio não podiam atrasar, nem os comprados no camelô.
Qualquer dia desses andava pela rua e foi assaltado. O homem roubou seu terno, seu relógio de bolso, seu celular com relógio, seu relógio de pulso, a chave de casa. Roubou tudo, todos os seus relógios e o seu dinheiro. Sentou na rua desesperado e começou a chorar – roubaram meu tempo! Sem mais nem menos, mesmo no meio do tumulto da cidade, mesmo com sua camisa e gravata e sem relógios tudo ficou silencioso.
Porém, como em qualquer relógio de ponteiros o tic-tac continua. Ele rapidamente recobrou o ritmo, e de noite antes de dormir no seu quarto com relógios, com o tic-tac dos relógios o tempo voltou para o lugar e mesmo no silêncio começou um sussurro no seu ouvido: tic-tac-tic-tac.
______
Mayara Floss é acadêmica de medicina na Universidade Federal de Rio Grande e também escritora. Em 2009 lançou o livro de poesias “Falta um poema...”, em 2012 o livro “Fôlego” de poesia e fotografia e participou da organização e editoração junto com Pedro Porciúncula do livro “Poetas de Pijama”. Desde 2009 tem o blog Entre-primos que desenvolve com o primo, o fotógrafo Fabiano Trichez. Toca violão e este ano está lançando com o violonista clássico Gilson Antunes os três livros com a temática do violão: “Violão”, “O menino e o Violão” (livro infantil) e “Canhoto - Rei do violão brasileiro” (peça de teatro).
Um dia ele conseguiu ouvir um relógio em sua casa. Olhou para os pulsos e não tinha nada, olhou para todos os lados, há anos tinha se livrado dos relógios de ponteiro. Mas ouviu o tic-tac-tic-tac que era quase um sussurro. Tentava encontrar da onde vinham os estalidos do ponteiro do relógio, mas era tudo invisível. Escutava até quando queria estar em paz no banheiro. Parecia que tinham plantado um relógio invisível no seu lar. Aquele sussurro contando que as horas que passavam ficava batendo em sua mente. Como um tic-tac suspenso no ar.
De repente, em qualquer dia, qualquer hora, qualquer minuto ou segundo ele saiu de casa e o tic-tac saiu também acompanhando-o. Seguiu por todos os cantos e lugares e continuava aquele sussurro, batia mas era quase um silêncio. Ele procurava o relógio, às vezes encontrava em algum escritório, ou na parede do banco, ou na sala do médico. Muitas vezes não tinha nenhum por perto.
Ele decidiu acampar, sem relógio, sem tempo. Mas o tic-tac acompanhava quando parecia que não podia mais ter ser humano nenhum. Era o tempo sussurrando sobre horas. Era o tic-tac do relógio invisível prendendo o homem entre os seus ponteiros. Achatando-o.
Aquilo começava a incomodar, a ganhar mais som, mais barulho, a soar mais. Era o tic-tac do relógio que martelava em sua cabeça.
Decidiu então, para não enlouquecer, se apaixonar: começou a dar corda nos relógios.
Decidiu ter um relógio no pulso, já que escutava sempre o tic-tac. Logo comprou um relógio para a parede, um despertador para o quarto, outro relógio de ponteiros para o escritório. Decidiu que ia dar de presente relógios para os amigos que chegavam atrasados, e para os que chegavam na hora para não perderem o tempo. Decidiu que ia conviver com o tic-tac já que não poderia abafá-lo.
Transformou sua vida em relógios, comprou um relógio de Cuco que tinha que dar corda, e quase não saia de casa para ele não atrasar, não saia no final de semana porque corda tinha que dar. Começou a vibrar no som dos ponteiros, se não podia vencê-los fez deles o sentido da sua vida. Sentido horário é claro. A cada volta de 360 graus era um alento e quando um relógio parava corria para o relojoeiro porque o tempo não para. Chegava ao relojoeiro e ficava aliviado com o som rítmico das horas.
Virou inglês de tão pontual. Nunca perdia as horas, nunca perdia tempo, nunca perdia o tempo. Na sua casa tinha relógio de sol, relógio de pulso, relógio de parede, relógio antigo, despertador, relógio no micro-ondas, relógio onde pudesse ter relógio. Ganhava relógios de presente. Na sua parede já tinha mais de um relógio. E sempre colocava todos em dia, porque relógio não podiam atrasar, nem os comprados no camelô.
Qualquer dia desses andava pela rua e foi assaltado. O homem roubou seu terno, seu relógio de bolso, seu celular com relógio, seu relógio de pulso, a chave de casa. Roubou tudo, todos os seus relógios e o seu dinheiro. Sentou na rua desesperado e começou a chorar – roubaram meu tempo! Sem mais nem menos, mesmo no meio do tumulto da cidade, mesmo com sua camisa e gravata e sem relógios tudo ficou silencioso.
Porém, como em qualquer relógio de ponteiros o tic-tac continua. Ele rapidamente recobrou o ritmo, e de noite antes de dormir no seu quarto com relógios, com o tic-tac dos relógios o tempo voltou para o lugar e mesmo no silêncio começou um sussurro no seu ouvido: tic-tac-tic-tac.
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Mayara Floss é acadêmica de medicina na Universidade Federal de Rio Grande e também escritora. Em 2009 lançou o livro de poesias “Falta um poema...”, em 2012 o livro “Fôlego” de poesia e fotografia e participou da organização e editoração junto com Pedro Porciúncula do livro “Poetas de Pijama”. Desde 2009 tem o blog Entre-primos que desenvolve com o primo, o fotógrafo Fabiano Trichez. Toca violão e este ano está lançando com o violonista clássico Gilson Antunes os três livros com a temática do violão: “Violão”, “O menino e o Violão” (livro infantil) e “Canhoto - Rei do violão brasileiro” (peça de teatro).
Muito bom. Seria bom perder o tempo as vezes, mas no mais é melhor mantê-lo por perto para não perdermos o mais importante.
ResponderExcluirE foi importante ler este texto, criativo, nostálgico, mas, para mim, divertido no tempo, digo, no ponto certo.
Bjs
Adriane
O tic-tac flutua ao nosso lado, sempre.
ResponderExcluirNosso metrônomo.
Muito bom, Mayara!