YIN E YANG
Aí está algo que sempre me deixou intrigado, na vida: o símbolo do Yin-Yang. Aqueles dois girinos, um sobre o outro, representantes das energias do universo, com seus princípios ativo e passivo, masculino e feminino, branco e negro, sempre me incomodaram de alguma forma.Essa representação do mundo como união de oposições, como necessidade de complementaridade entre as coisas, me inquietava. Porque o Yin-Yang explica a imprescindibilidade de um outro, de um elemento contrário que imponha uma pequena gota de si para desacomodar a nossa porção pacífica de comodidade. E isso atordoa, atormenta, deprime.
Nasci sozinho, e nunca tive uma gota negra que me movesse da comodidade. Aliás, nunca tive comodidade, sempre fui uma porção líquida de alma que se estendeu pelo mundo em busca de uma gota capaz de dar-lhe forma e vida. Meus pais, findos desde a minha cosmogonia, não me deixaram uma lembrança, um amuleto, uma marca que fosse da sua presença e do seu afeto. Restaram apenas documentos históricos relatando os acontecimentos, e uma ou outra foto para a qual sempre olho, como que buscando qualquer identificação que me permitisse reconhecer ali um dos meus progenitores. E então crio mundos, invento histórias, conto relatos harmoniosos de família e brinco de ser criança escondida, à espera do momento em que o pai, sabendo do esconderijo, finja ainda não ter lhe visto e faça uma cara gostosa de espanto, dando ao pequeno a satisfação de haver enganado um superior.
Mas volta e meia mergulho no poço fundo da realidade e me pego só, ínfima gota isolada que é incapaz de fazer diferença no todo porque lhe é impossível integrá-lo. Nunca tive mulheres, nem amigos, nem nada que desse qualquer ideia de laço afetivo. Verdadeiramente sinto que não sou capaz de completar ninguém e que ninguém nesse mundo será capaz de, um dia, dar-me qualquer ilusão de plenitude.
E hoje, aos 66 anos de idade, pude compreender enfim o porquê disso tudo. Seis, número da conciliação entre opostos, da harmonia – doce ironia – entre os princípios masculino e feminino. Yin e Yang. As dores começaram há dois meses, e o que escondo tem se feito mais aparente a cada dia. Parece que irá romper todas as minhas barreiras e gerar um novo ser.
Ao receber o resultado dos exames, estremeci. Senti um misto de dor e regozijo, como se houvessem pingado ácido em uma ferida aberta e essa dor, de alguma forma, trouxesse-me a felicidade de fazer-me sentir vivo, de compreender que a vida tinha sentido e que eu queria, sim, queria vivê-la. Que o problema não estava em mim, mas que alguma instância divina – sabe-se lá a causa – resolvera dar-me a completude que eu não encontrara em nada no mundo.
Nasci órfão, vivi sozinho e nunca tive ninguém. E apenas aos 66 anos de idade descobri que, devido aos labirintos da genética, meu fenótipo yang guarda um imenso e disforme yin. A dor que me abre feridas e pinga ácido nelas é uma pequena gota de yin que cresce e que, lutando contra aquilo em que eu sempre cri, desacomoda a porção não muito grande de certezas da minha identidade.
Entretanto, apesar disso, o que deveria ser uma tragédia, tornou-se para mim um confuso conforto. Nunca tive a gota negra da alteridade porque me basto, meu yang é casca que guarda a completude. Aos 66 anos de idade, finalmente alcancei o duplo equilíbrio que a numerologia tanto previra.
E, mais uma vez, a alteridade passa a atormentar-me. Que dirão? Que farão? Sou um alien, um monstro, um demônio?
Nesse mundo de farsas, resolvo então vestir a máscara que por tanto tempo cri essência, e passo por ti, leitor, como um qualquer. Não serei cobaia de experimentos mirabolantes nem notícia de tolos jornais alienados e sem conteúdo.A solidão sempre foi minha única e sóbria companheira, e é dela que hei de valer-me até que meu sol se ponha. Ser um novo Tirésias trouxe-me sabedoria o suficiente para saber que as normas desse mundo são vãs demais para compreender a complexidade desse eu-outro que habita em mim. Dentro e fora, casca e fruto, yang e yin.
Aí está algo que sempre me deixou intrigado, na vida: o símbolo do Yin-Yang. Aqueles dois girinos, um sobre o outro, representantes das energias do universo, com seus princípios ativo e passivo, masculino e feminino, branco e negro, sempre me incomodaram de alguma forma.Essa representação do mundo como união de oposições, como necessidade de complementaridade entre as coisas, me inquietava. Porque o Yin-Yang explica a imprescindibilidade de um outro, de um elemento contrário que imponha uma pequena gota de si para desacomodar a nossa porção pacífica de comodidade. E isso atordoa, atormenta, deprime.
Nasci sozinho, e nunca tive uma gota negra que me movesse da comodidade. Aliás, nunca tive comodidade, sempre fui uma porção líquida de alma que se estendeu pelo mundo em busca de uma gota capaz de dar-lhe forma e vida. Meus pais, findos desde a minha cosmogonia, não me deixaram uma lembrança, um amuleto, uma marca que fosse da sua presença e do seu afeto. Restaram apenas documentos históricos relatando os acontecimentos, e uma ou outra foto para a qual sempre olho, como que buscando qualquer identificação que me permitisse reconhecer ali um dos meus progenitores. E então crio mundos, invento histórias, conto relatos harmoniosos de família e brinco de ser criança escondida, à espera do momento em que o pai, sabendo do esconderijo, finja ainda não ter lhe visto e faça uma cara gostosa de espanto, dando ao pequeno a satisfação de haver enganado um superior.
Mas volta e meia mergulho no poço fundo da realidade e me pego só, ínfima gota isolada que é incapaz de fazer diferença no todo porque lhe é impossível integrá-lo. Nunca tive mulheres, nem amigos, nem nada que desse qualquer ideia de laço afetivo. Verdadeiramente sinto que não sou capaz de completar ninguém e que ninguém nesse mundo será capaz de, um dia, dar-me qualquer ilusão de plenitude.
E hoje, aos 66 anos de idade, pude compreender enfim o porquê disso tudo. Seis, número da conciliação entre opostos, da harmonia – doce ironia – entre os princípios masculino e feminino. Yin e Yang. As dores começaram há dois meses, e o que escondo tem se feito mais aparente a cada dia. Parece que irá romper todas as minhas barreiras e gerar um novo ser.
Ao receber o resultado dos exames, estremeci. Senti um misto de dor e regozijo, como se houvessem pingado ácido em uma ferida aberta e essa dor, de alguma forma, trouxesse-me a felicidade de fazer-me sentir vivo, de compreender que a vida tinha sentido e que eu queria, sim, queria vivê-la. Que o problema não estava em mim, mas que alguma instância divina – sabe-se lá a causa – resolvera dar-me a completude que eu não encontrara em nada no mundo.
Nasci órfão, vivi sozinho e nunca tive ninguém. E apenas aos 66 anos de idade descobri que, devido aos labirintos da genética, meu fenótipo yang guarda um imenso e disforme yin. A dor que me abre feridas e pinga ácido nelas é uma pequena gota de yin que cresce e que, lutando contra aquilo em que eu sempre cri, desacomoda a porção não muito grande de certezas da minha identidade.
Entretanto, apesar disso, o que deveria ser uma tragédia, tornou-se para mim um confuso conforto. Nunca tive a gota negra da alteridade porque me basto, meu yang é casca que guarda a completude. Aos 66 anos de idade, finalmente alcancei o duplo equilíbrio que a numerologia tanto previra.
E, mais uma vez, a alteridade passa a atormentar-me. Que dirão? Que farão? Sou um alien, um monstro, um demônio?
Nesse mundo de farsas, resolvo então vestir a máscara que por tanto tempo cri essência, e passo por ti, leitor, como um qualquer. Não serei cobaia de experimentos mirabolantes nem notícia de tolos jornais alienados e sem conteúdo.A solidão sempre foi minha única e sóbria companheira, e é dela que hei de valer-me até que meu sol se ponha. Ser um novo Tirésias trouxe-me sabedoria o suficiente para saber que as normas desse mundo são vãs demais para compreender a complexidade desse eu-outro que habita em mim. Dentro e fora, casca e fruto, yang e yin.
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Giliard Barbosa faz de tudo um pouco: curte corrida, fotografia, gastronomia, e estuda teclado - mas não toca nada. Escreve desde pequeno aquilo que chama de pseudopoemas. Formado em Letras, é professor de espanhol e mestrando em História da Literatura pela Furg, onde estuda relações entre mito e literatura. Além de vir publicando alguns artigos sobre o tema, dá aulas de Literatura em projetos universitários e atua no grupo de teatro O Flato do Gato, dirigido por Geraldo da Silva. Sempre que uma palavra lhe coça os ouvidos, vai para o blog OCasmurro, depósito do arteiro poeta.
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