Aconteceu na livraria
Aquele cidadão entrou na loja logo nos primeiros minutos
do dia. Os computadores se quer tinham
inicializado. Ainda pensavam os funcionários sobre qual seria a primeira tarefa
do dia. Não tinham muitas opções, sempre há uma tarefa que deve ser executada
antes das outras. O que tinham então eram pensamentos fingidos, deliberações
com o propósito de enganar o espírito, mentir autonomia e propriedade.
Esperavam o trivial, tudo aquilo que quando se tem, não se quer mais, e quando
não se tem, seguro desemprego e bolsa família. Reclamar é também agradecer pela oportunidade.
Só que aquele cidadão que entrou na loja (nos primeiros minutos do dia) talvez
não tivesse do que reclamar. Pois sorria.
Imagine
só! Pense num morador de rua, construa o corpo da fome, os trapos da tendência winter’s street, cabelos em louvor a Jah
e tudo mais que se pode arruinar. Dê a ele cara de drogado, fala apressada,
fissura da pedra, essas coisas do imaginário urbano. Coloque-o em um ambiente
lotado de livros, elitizado, você sabe, paquiderme na loja de cristais. Evite
pensar na cor da pele (isso foi por sua conta), não seja um Feliciano da vida. Agora,
junto ao cidadão já bem formado em sua cabecinha, coloque um vendedor antigo na
casa, calejado da clientela, ansioso por uma boa venda, um salto para o topo do
ranking. Temos uma bela montagem.
Faceiro
da vida, o cidadão se dirigiu ao vendedor e balbuciou palavras conhecidas:
“Tem
gelo e fogo, gelo e fogo?”
“Não
entendi, amigo.”
“Aquele
livro, gelo e fogo.”
“Queres
dizer Crônicas de Gelo e Fogo?”
“Isso
ai, gelo e fogo, gelo e fogo.”
“A
coleção está ali, ó!”
“Ali?”,
apontou o cidadão para o primeiro livro que viu deitado sobre a mesa dos “mais
vendidos”.
“Não
amigo, lá ó!”
“Esse
aqui?”, apontava o livro ao lado do anterior.
“Não,
não. Presta atenção em mim. Lá ó!”
“E
quanto tá?”, mal tinha visto os livros, já queria saber o preço.
“É
cinquenta e quatro e noventa.”
“Tá
bom, valeu. Tchau!”
Virou
as costas. Vale saber que o vendedor disse o preço do volume mais caro da
série, já com o intuito de correr o cidadão da loja e deixar os clientes à
vontade. Isso é recorrente em comércios: miseráveis não entram.
O
pobre cidadão nervoso foi um dos motivos das risadas de descontração. Muito se
falou nele. Travado de coca, doente, acho
que ele é assim mesmo, vamos passar para o novato da equipe, uma forma de
batismo, marcar a pele com ferro quente. Tomara que não volte.
Mas
ele voltou, no outro dia, mais sorridente e faceiro do que nunca. Um mistério o
que faz o cidadão feliz. O vendedor, o mesmo de antes, pois ele sempre está lá,
sem como fugir, abordou o cidadão com voz firme - será que ele vai dar em vim todos os dias
aqui? As mãos nas costas, o peito estufado, a voz de macho que não era dele.
“Posso
lhe ajudar, amigo?”
A
mão limpa esticada em cumprimento. O nojo de apertar a mão do cidadão; mais
forte a obrigação profissional e as câmeras de vigilância - que vigiam
funcionários - do que o asco social
incrustado no espírito dos mais ou menos bem posicionados.
“Eu
quero um dicionário inglês-português.”
“Um
dicionário?”
“Inglês-português,
inglês-português.”
“Tá,
olha aqui ó. Tenho este ó, Oxford, trinta e nove o sem CD e quarenta e nove o
com CD. Tu escolhe. O CD vem com o conteúdo do dicionário.”
“O
sem CD é mais barato né?”
“Sim,
é trinta e nove e noventa.”
Vendedor
e cidadão se olhavam. Carrancudo e sorridente, um sorriso cheio de dentes, sabe-se
lá se o sorriso é pedra ou felicidade. Pode ser doença. Era o que pensava a
colega ao lado, vendo toda ação com olhos de quem vê criança raquítica pedindo
comida. Outro colega, em risadas, se escondia. Cada um na sua razão. A cena
tinha tudo de engraçado e triste.
“Tá,
eu volto depois. “
“Tudo
bem, amigo. Até a próxima.”
Enquanto
o vendedor mostrava os inglês-português para o cidadão, uma venda de quase mil
reais passou ombro a ombro com ele, ficando com a colega de trás. A venda do
dia. Em números, a colega já podia ir para casa e curtir o resto da tarde. O
vendedor levaria mais umas horas para atingir a meta diária e dar seu dia por
vencido.
E a
fila andava depressa, livro sobre livro, vendas e negociações. O trem corria
nos trilhos e fazia vácuo em quem ficava para trás. Ia bem o vendedor, telefone
e telefone, seis vezes no cartão, é pra presente?, amanhã estará aqui, vem de
Pelotas. Só um momentinho, por favor.
A
loja bombando, livro faltando. Um breve momento de ócio, parada para pensar na
próxima ação, o vendedor ligaria para avisar os clientes que os livros
encomendados não viriam, estavam em falta na distribuidora. Debruçado no
balcão, telefone na orelha, todo mundo atendendo. A normalidade insana dos dias
de trabalho.
Na
ponta da vitrine, do lado de fora da loja, despontou o cabelinho quase rasta. O
sorriso e os olhos estalados. Não vai entrar, não vai entrar. Entrou.
“Puta
que pariu!”
Fingiu
falar com alguém ao telefone. Um colega
que atenda esse maluco. O cidadão sorriu largamente para o vendedor, parecia
criança encontrando a mãe. Olhar breve, meneio de cabeça para não parecer rude
e blá, blá, blá. A colega do parágrafo acima, comovida, ofereceu-se para ajudar
o visitante.
“Eu
quero o dicionário inglês-português, inglês-português.”
“Qual
foi o dicionário que tu mostrou pra ele.”
“Foi
aquele ali, ó”, apontou o Oxford, sem tirar o fone da orelha.
“É
esse aqui, amiguinho?”
“É
esse mesmo. Tá aqui o dinheiro.”
Um
bolinho de moedas e notas fora jogado sobre o balcão. Era um real, dois reais,
centavos e centavos de real. A colega precisou contar moeda por meda, separar
as iguais e desamassar as notas bêbadas. Aquele sorriso de orelha a orelha.
Vinte e três e noventa. O vendedor aproximou-se com ar de segurança, pretendia
proteger a colega de possíveis ataques do marginal.
“Peraí
que vou tentar um bom desconto para tu levar esse dicionário.”
As
mãos e os olhos corriam loucos pelos livros. Abria e folheava o primeiro que
encontrasse. Uma fome por leitura que há
muito não se via.
“Olha
amiguinho, esse dinheiro não dá. Tentei todos os descontos possíveis. Mas não
deu mesmo. Desculpa, volta outra hora, eu guardo o dicionário pra ti.”
“Tá,
e esse de filosofia, quanto é? Pode ser esse, né?”
“É
vinte e cinco. Esse aí dá. Queres?”
“Não,
não. Eeu quero o dicionário inglês-português, inglês-português.”, saiu a passo
e deixou o dinheiro com a colega.
“Olha
aqui teu dinheirinho, não esquece.”
“Moça,
moça, posso deixar contigo, tu cuida pra mim?”
Certo
que correu uma lágrima pelo rosto da colega.
“Amiguinho,
não posso ficar com teu dinheiro. Leva, mas cuida, não perde.”
“Tá,
tá.”
Só
deu pra sentir o vento da passagem do cidadão pela loja. Quase saiu antes da
porta abrir. Sabe-se lá onde ia e quando voltaria.
“De
onde será que ele tirou esse dinheiro? Foi tão rápido, não deu tempo de roubar
tantos trocados assim!”, levantou o vendedor.
“Vai
ver ele pediu, oras. Não precisa ser roubo.”,defendeu. A colega, claro.
“Eu
acho que ele tá chapado.”, disse outro funcionário, vindo do fundo da loja,
pouco a par do acontecido.
“Dei
mais de quinze por cento e mesmo assim não deu. Uma pena, ele parece muito a
fim de ter o dicionário.”
Fingiam
voltar a seus afazeres. Todos pensavam no rumo do cidadão, onde ia, com quem
iria, o que fazia. Talvez voltasse um dia.
Mas
toda fome exige pressa.
“Moça,
moça, acho que agora o dinheiro dá”.
O
cidadão entrou na loja em silêncio e surpreendeu a todos. Quando viram, o
dinheiro já estava novamente largado sobre o balcão. Agora parecia mais, uns
trocados extras, mais moedas. E aquele baita sorriso de orelha a orelha.
A
colega juntou os papéis amassados e as moedas espalhadas. Contou e contou e
contou, deixou sair o ar que insistia em permanecer nos pulmões. Ar residual do
turbilhão de emoções que vivia com aquele jovem faminto por leitura.
Ela
olhava para o sistema, mudava descontos, digitava senhas mágicas que aumentavam
aas possibilidades de o cidadão sair com o dicionário. Caras e bocas, balanço
de cabeça de quem pensa em uma solução. Pronto.
“Agora
acho que vai dar.”
Não
tinha mais para onde ir tanto sorriso. Não cabia no rosto e no espírito a
felicidade daquele rapaz. Pegou a sacola com todos os dedos. Enrolou o plástico
na mão direita, quase cortando a circulação, apertou o dicionário contra o
peito e saiu a passos mais rápidos que antes. Parecia fugir com o volume, para
que ninguém o tirasse dele. Era uma criança em noite de Natal.
O
senso comum me manda dizer que todos aprenderam uma lição. Mas você sabe, não é
verdade.
“Fico
pensando o que ele vai fazer com o dicionário.”
“Ele vai ler, oras.”, defendeu, ela.
“Ele vai ler, oras.”, defendeu, ela.
“Mas
não se lê dicionários. Se usa para pesquisa.”
“Eu
acho que ele vai ler. E acho que ele vai voltar.”
“Esse
negócio de dar esmolas não leva o país pra frente. Assim ficamos na mesma: o
governo dá bolsa família, as pessoas dão esmola... Quem vai salvar esse garoto?
Ele precisa de um emprego!”
“Você
daria um emprego a ele?”
“Bem,
eu não, mas esse governo paternalista tem projetos de inclusão, não tem?”
“Você
daria um emprego a ele?”, insistiu a colega, enfática e irada. Como se
terminasse a especulação sobre o novo cliente. “Agora ele é cliente, merece
respeito.”
E
nada mudou na vida da gente vendedora.
O
cidadão agora é um cidadão com dicionário inglês-português.
Foi
bonito. E é raro. Raríssimo.
______
Rody Cáceres
Escrever sobre si é aquilo. Aquilo que imaginamos, aquilo que iludimos. É buscar nos outros o que não encontramos em nós mesmos. Gosto de dizer que sou uma tentativa. Enquanto tento, ninguém me cobra o resultado. Mas tenho um blog: www.blogdorodycaceres.blogspot.com. Lá você me encontra tentando (sem trocadilhos). Contato: rody.caceres@hotmail.com.
Eu sei bem como é...
ResponderExcluirAmei Rody. Tens muitos textos legais, mas este, este eu nem sei o que falar.
Talvez um osso na garganta explicaria melhor.
Abraços.